vae victis
um livro de Rafael Palma
segunda-feira, maio 15, 2006
...pausa para rolar alguns dados.

Pilhar, matar, destruir.

Esse é o nome da primeira canção composta por Llyr Lenwë em forma de lamento por sua aldeia pilhada, família morta e infância destruída por figuras hoje ocultas pelas sombras de suas memórias infantis.

Por meses abandonado à própria sorte, vagou por estradas desconhecidas vivendo da caridade alheia onde a bondade de um coração parecia estar diretamente ligada à quantidade de ouro em seus bolsos. Orava a qualquer deus que pudesse escutar para que acabasse com aquela existência, de uma forma ou de outra.

Em determinada manhã, sentado nos degraus de um templo, ele foi ouvido.

Sua existência de miséria e mendicância acabaria ali, naqueles degraus.

Um velho bem vestido e com dedos cobertos de anéis brilhantes pediu que lhe contasse sua história. Ele a ouviu e disse que aquela não era a verdadeira história. Com uma espécie de viola de nove cordas ele tocou uma canção inspirando bravura em cada um dos viajantes que chegavam ou deixavam o templo. Todos pararam e ouviram de olhos esbugalhados como ele contava uma fabulosa história em forma de canção sobre um menino que lutara heroicamente para sobreviver a um igualmente fabuloso e perverso ataque a uma aldeia em busca de um tesouro que todos escondiam com suas vidas.

Ao fim da canção até mesmo Llyr acreditava que aquela havia sido sua história.

As pessoas aplaudiram e jogaram moedas aos pés do velho que guardava seu instrumento e do menino que se atirava ao chão catando as moedas.

O homem se apresentou e explicou a Llyr que sua forma favorita de manipular as pessoas era fazer com que dessem a você o que quer que precise enquanto sorriam e acreditavam que aquilo lhes faria bem à alma. Explicou o que era um Bardo e que este era sempre muito mais do que todos pesavam. Explicou que ele poderia ser um e que talvez não fosse sequer difícil. Explicou que sua vida teria novamente um sentido, mesmo que não fosse um sentido que o agradasse a princípio, e que isso por si só já era muita coisa. Naquele momento, era só o que ele precisava.

Então, como quem aceita o inevitável sem perceber que havia outras opções, ele seguiu com o velho Bardo aprendendo suas canções e habilidades em entreter as pessoas com o que elas esperam que você seja sem mostrar na verdade quem você é. Aprendendo, criando e assistindo lendas serem criadas. Lendas que contaria mais tarde de forma que soassem ainda mais fabulosas aos ouvidos do mundo.

Assim Llyr aprendeu a suave canção que enevoa a mente e, por muito tempo, pessoas sorridentes lhes deram as coisas que ele queria.

...talvez coisas sejam alteradas... vou pensar mais sobre isso.
terça-feira, maio 09, 2006
from the journal of a dead man - 5

- Sim, você precisa de atenção... precisa ter mais atenção ao seu redor!

- Para ver o quê? Que não possuo controle sobre absolutamente nada em minha vida! – as palavras explodiram de seus lábios como uma bomba de raiva e medo. – A única coisa que me parecia sob meu controle me trouxe até aqui! E só o que eu vejo ao meu redor é que mais uma vez estava errado! Eu não tenho controle algum!

O velho se levantou do sofá de veludo negro e caminhou apoiado em sua bengala de madeira por trás do sofá, em direção ao homem que pintava o quadro alheio à dramática cena no centro do salão.

- Controle é uma ilusão, garoto.

A música havia mudado novamente. A melodia agora cheia de mágoa fazia seu coração bater triste dentro de um compasso. Ele começou a perceber o poder da música daquela mulher sobre ele.

As melodias pareciam guiar suas ações como cordas guiam uma marionete.

- Acredita mesmo que seria diferente se você tivesse o controle que busca?

- Eu sei que seria. – dominado por uma enorme melancolia, ele se arrastava de volta para a poltrona negra. – Se eu pudesse escolher o rumo das coisas, livre de interferências dos outros...

- Ainda assim garoto. – o velho falava entre contidas risadas. – Não teria controle algum.

- É o que você diz, velho asqueroso. É sua palavra contra a minha.

Ele se acomodou de volta na poltrona, ajeitando as pernas sem vida. Olhou a garota ao piano, que tocava com a cabeça baixa, os cabelos cobrindo o rosto, movendo apenas os braços. Ela era a melancolia.

- Agora que você está de volta ao seu lugar, e disposto a ouvir melhor, eu lhe digo que posso provar minha palavra.

Ele olhou para o velho e descobriu surpreso que aquele era novamente o velho corcunda bem arrumado de antes, sentando-se ao sofá. A voz esganiçada permanecia.

- Ouça bem, meu pequeno suicida, pois só direi uma vez. – ele gesticulava com as mãos velhas de dedos finos, longos e nodosos. – Uma única vez.

Ele fez que sim com a cabeça e permaneceu em silêncio.

- Dar-lhe-ei uma tela em branco, muito parecida com a daquele homem quando você chegou aqui. – disse apontando o mascarado, que continuava seu ofício indiferente a tudo. - Dar-lhe-ei poder e liberdade para pintá-la como desejar. Você criará livre de influências de outros, se assim desejar. Tudo será feito à sua maneira, o tempo todo. E se ao fim, estiver satisfeito, dar-lhe-ei minhas desculpas e meu lugar.

- E se eu não aceitar?

- Não me recordo de ter mencionado opções.

A música parou.

Sem a música, pela duração de um pensamento, ele se sentiu perdido e vazio. Surpreso pelo silêncio, ele olhou para o lado do salão onde se encontrava o piano. A mulher havia abandonado seu lugar e caminhava em sua direção, desfilando como se posasse para o pintor mascarado. Caminhava com o olhar sério, fixo no jovem suicida. Seus lábios eram pequenos e muito vermelhos. Ele não conseguia deixar de fita-los.

- Tenha em mente que tudo será como você desejar. – a voz esganiçada tirou sua concentração. – Tudo será resultado de sua vontade. Tudo.

Olhava o velho sem dar atenção ao que ele dizia. Não esquecia os lábios da mulher que se aproximava. Dividido, olhava ora para a mulher, ora para o velho corcunda.

- Esqueça-o, meu amor. Você já ouviu o suficiente... – ela o envolveu em seus braços, inclinada sobre ele. – Agora somos nós. Apenas nós.

Ela aproximou seu rosto lívido cada vez mais do dele, que permanecia inerte, incapaz de afastar os olhos, pensamento e desejo dos lábios vermelhos agora tão próximos dos seus.

De olhos fechados, ela encostou seus lábios nos dele.

Quando seus lábios se tocaram ele perdeu o senso de realidade. As estrelas caiam como estrelas cadentes no céu pintado sobre o salão, os vitrais nas paredes giravam como carrosséis e ele poderia jurar que via enormes asas de mariposa atrás da mulher.

Em segundos, tudo se dissolveu em cores escuras.

As pessoas, o salão, o mundo.

...acho que estou negligenciando meu trabalho principal...

segunda-feira, maio 08, 2006
from the journal of a dead man - 4

- Eu não sei ao certo. Atenção, talvez.

- Atenção? – o velho esticou os lábios em um sorriso. – Aquele homem ali está atento a cada detalhe em você, reproduzindo de forma fiel tudo o que você é. A jovem ali toca esta música apenas para você. Eu estou ouvindo o que você tem a dizer. Não lhe é suficiente?

Ele esfregou ambos os olhos com vontade. A conversa estava se tornando chata e repetitiva. Sentia-se andando em círculos e achou que deveria encerrar essa loucura, independente do que isso pudesse significar.

- Sinto muito, mas não há nada para mim aqui.

Apoiou-se nos braços da poltrona para se levantar e impulsionou o corpo para cima. Antes que pudesse perceber, estava caído no chão.

Ele não sentia mais suas pernas.

Sem entender completamente o que estava acontecendo ele puxou e balançou as pernas esperando sentir alguma coisa. Com o medo crescendo no peito, olhou para o velho na poltrona. Ele o observava com fúria nítida em sua face. Estava mais velho e deformado, com manchas pela pele e poucos fios de cabelo eriçados na cabeça oleosa.

A música se tornou inesperadamente mais rápida e angustiante. Uma melodia repetitiva que parecia interagir com o medo e as batidas de seu coração.

- Você nunca está atento, não é? – a voz esganiçada feria seus ouvidos, como se furasse seus tímpanos para invadir e ecoar em sua mente. – Não há nada aqui para você, não é? Você! Você está aqui, agora. É isso o que há aqui. Você!

...se não me cuido, isso acaba ficando pesado demais. Estava prestes a transformar a pianista em uma Succubus.
...talvez eu faça isso.
sexta-feira, maio 05, 2006
from the journal of a dead man - 3

- Paz. - a resposta deixou seus lábios sem que ele percebesse. Ele prestou atenção no que havia dito e continuou. – Gostaria que fosse um lugar de paz.

Silêncio.

Enquanto o velho parecia assimilar sua resposta ele realmente ouvia, pela primeira vez desde que a percebera, a música tocada pela mulher ao piano. Não conseguia definir se era triste ou apenas plácida. A expressão no rosto da jovem parecia acompanhar essa mesma oscilação.

- Você deseja paz? Olhe ao seu redor...

A voz esganiçada do velho lhe deu tempo para olhar ao seu redor mais uma vez e perceber melhor as nuances e sutilezas do salão.

- Você tem um céu repleto de estrelas. Você tem música e arte. – o velho gesticulava e apontava tudo ao seu redor enquanto falava. - Você tem conforto. Você tem companhia para conversar sobre o que desejar. Do que mais precisa para ter paz?

O jovem suicida procurou ser sincero consigo mesmo antes de tentar ser sincero com o velho. Ele queria responder a verdade, sentia como se pudesse fazer isso livre de julgamentos.

E assim ele faria.

...acalmem-se, groupies! (eu amo vocês)
quinta-feira, maio 04, 2006
from the journal of a dead man - 2

Não haveria resposta e ele sabia disso.

Encheu os pulmões de ar, prendeu a respiração e forçou seus olhos a se abrirem. Encontrava-se sentado em uma poltrona de veludo negro, de frente para um sofá também de veludo negro. Sentado sobre ele, ocupando apenas um dos três lugares, um velho franzino e corcunda vestindo um terno azul marinho o encarava com olhar e sorriso diabolicamente insano.

Encontrava-se em um salão redondo, sem portas ou janelas, iluminado por uma luz fraca da qual ele não conseguia descobrir a origem. As paredes eram cobertas de vitrais em tons de azul com imagens de anjos tocando trombetas em suas nuvens, demônios dançando sob a lua e esqueletos sobre cavalos correndo em círculos. Pareciam fazer parte de um grande painel contando uma história. O teto era pintado como um céu repleto de estrelas que pareciam ter brilho próprio. Havia um senso de profundidade na pintura, mas ainda assim era só uma pintura.

Havia outra pessoa no salão além deles.

Um homem mascarado, de pele clara e cabelos espetados, pintava um quadro. Vestia um terno negro com um lenço escarlate na lapela. Pelos movimentos de sua cabeça, o suicida e o velho pareciam ser os modelos.

Ele percebeu música e se questionou se todos estavam realmente ali na primeira vez em que olhou ao redor. Ao se questionar isso, se surpreendeu com o fato de estar aceitando o que via. Não deveria ser tão simples.

Do outro lado do salão uma mulher, ainda muito jovem, tocava um piano de cauda negro como o céu sobre o salão. Os longos cabelos castanhos balançavam com seus movimentos cheios de paixão ao piano. Os lábios pequenos esticavam-se em um sorriso em seu rosto longo. Ela tocava como se não houvesse mais ninguém ali.

O velho emitiu um som, limpando a garganta e atraindo de volta a atenção do jovem suicida.

- O que é este lugar?

- O que você gostaria que ele fosse?

quarta-feira, maio 03, 2006
from the journal of a dead man

- E assim, eu deixo esse mundo.

Com um impulso único, lançou seu corpo ao ar e deixou para trás o terraço.

Sua vida não passou diante de seus olhos. Só havia ele, o vazio do mundo e o vento em seus cabelos.

Aquilo era paz.

Manteve os olhos fechados enquanto sentia o vento. Não queria correr o risco de abrir os olhos próximo demais do chão. Não queria estragar o momento.

Mas o momento não chegava.

O prédio não era tão alto e ele já caía há algum tempo. O vento parecia se tornar mais forte contra seu rosto e aos poucos a paz deixou seu peito. Apertava os punhos enquanto descobria que começava a sentir medo. Por que não acabava? Ele não deveria ter tempo suficiente pra pensar no que quer que fosse.

Sem que ele percebesse de imediato, o vento parou.

Não sentia dor ou frio ou o que quer que fosse. Nada havia mudado além do vento. Não demorou até que fosse vencido pela ansiedade e abrisse seus olhos. Precisou fazer um grande esforço, como se seus olhos não quisessem ser abertos. Como se tivessem vontade própria e desejassem permanecer fechados.

- Se você abrir os olhos, nada será como antes. – ele ouviu dentro de sua cabeça. Uma voz que não a sua lhe dizia, estridente e distante. – Você ainda tem essa escolha.

“E se eu não abrir os olhos?”

...continua. (como toda história, se houver quem queira saber)